Guerreiras: Rosicleia Campos e Silvana Nagai, por caminhos diferentes, mostram o papel da mulher no esporte

Em comemoração ao Dia Internacional da Mulher, o Time Judô Rio dá voz a duas das principais representantes da modalidade que contam suas histórias inspiradoras


Todo mundo sabe, ou pelo menos deveria saber, que lugar de mulher é onde ela quiser. Depois de muitos anos de luta, literalmente, as guerreiras abriram espaço num ambiente machista, tanto na sociedade em geral, quanto no próprio esporte. E no Dia Internacional da Mulher, o Time Judô Rio deu voz para duas das mulheres mais fortes, grandes representantes da FJERJ, seja por seus comportamentos dentro do mundo do judô, seja pelo grande exemplo que são fora dele.

São elas: Silvana Nagai, liderança de um projeto social no Morro do Alemão, uma das comunidades mais carentes do Rio de Janeiro, que cria cidadãos e inspira vidas longe da criminalidade; e Rosicleia Campos, mentora da geração mais vencedora do judô feminino do Brasil, que abriu portas para que mulheres acreditassem no potencial no alto rendimento.

Rosicleia nasceu no Rio de Janeiro, em 1969. Silvana, no Recife, em 1972. Elas têm apenas três anos de diferença de idade, portanto, pertencem a uma mesma geração. Elas nasceram poucos anos depois de o Conselho Nacional de Desportos (entidade máxima do esporte brasileiro na época) definir, em 1965, que: “Não é permitida [a mulher] a prática de lutas de qualquer natureza, do futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo aquático, polo, rugby, halterofilismo e baseball”.

“Saímos de uma proibição por lei de prática esportiva de lutas e reescrevemos nossa história com várias medalhas em mundiais e 2 ouros e 3 bronzes olímpicos”, disse Rosicleia, citando as conquistas de Sarah Menezes, Rafaela Silva, Mayra Aguiar e Ketleyn Quadros.

“Eu quase não tinha meninas com quem treinar, competir. Então, tive que enfrentar muitos tabus e romper diversas barreiras até ser campeã brasileira e investir em minha formação profissional. Pode parecer “mimimi”, como se diz hoje, mas considero que nós mulheres temos que provar a todo momento nossa capacidade”, lembrou Silvana.

Às suas maneiras, Nagai e Campos conseguiram realizar os objetivos que almejaram, com muita luta, claro. Andaram por caminhos nada suaves, que levaram pro mesmo fim: mostrar que as mulheres enfrentam ainda muitos obstáculos, mas podem superá-los para serem donas do mundo, mesmo que seja seu mundo particular.

Acompanhe abaixo a entrevista com elas e as importantes lições que elas deixam para todos, mulheres e homens, no dia que marca a luta feminina por igualdade:

1) O que significa o esporte e o judô para você?
Silvana: Para mim, o esporte é uma das atividades mais importantes para a sociedade como um todo, pois atua na questão da saúde, da socialização, da segurança pública, uma vez que através de projetos sociais, oferece uma outra perspectiva à crianças, que passam a usufruir dos seus benefícios, aprendendo a lidar com regras e limites.

O Judô, para mim, vai muito além do esporte, é realmente uma filosofia que privilegia a busca pelo conhecimento e evolução pessoal, com valores bem definidos e, que se for ensinado em sua essência, vai contribuir para a formação de cidadãos empáticos, resilientes e  conscientes do seu papel social.

Rosicleia: Judô é minha vida. Procuro praticar as máximas do mestre Jigoro Kano no meu cotidiano, desde o embate com os filhos, na educação “ceder para vencer”, passando por reflexões pessoais como “somente se aproxima da perfeição quem a procura, com constância, sabedoria e, sobretudo, humildade”. Através do judô obtive minhas principais conquistas.

2) Como você definiu qual caminho seguiria dentro do esporte? O que pesou?
Silvana: Eu vim diversas vezes ao Rio para treinar, competir e fiz minha pós-graduação aqui. Então, quando terminei meu mestrado na Europa, decidi voltar para a Cidade Maravilhosa dos contrastes sociais, pois acreditava que o Rio, que seria palco das Olimpíadas, reunia todas as condições para a realização do meu sonho de levar a crianças, adolescentes e jovens em situação de extrema vulnerabilidade social, toda possibilidade de crescimento que o Judô me proporcionou.

Então, em 2012, Luiz Alberto Gama de Mendonça, que foi contemporâneo do meu pai, Tadao Nagai, ao saber que eu estava no Rio, me convidou para iniciar o projeto no Alemão. Eu nem pensei para aceitar (risos).

Rosicleia: Eu coloquei como propósito de vida ver o judô feminino com autonomia, identidade, respeitado. Minha primeira oportunidade foi dada pelo professor Joaquim Mamede em 2000, quando o comuniquei da minha aposentadoria como atleta de seleção (como atleta do Flamengo competi até 2004). Fui como técnica auxiliar para as Olimpíadas de Sidney. Em 2001, Edmundo, hoje meu esposo, me absorveu no quadro de treinadora do Flamengo e, nesse mesmo ano, fui convidada para ser treinadora de base da CBJ. Óbvio que sempre tivemos pessoas no esporte com o mesmo propósito e empenho! Mas no meu caso eu tive muita sorte, pois, além de eu ter me capacitado, ser formada e pós graduada, ter experiência de anos de atleta e ter vivido o mundo olímpico como competidora, o momento político/financeiro e apoio dos gestores tornaram um projeto em realidade.

O professor Paulo Wanderley (naquele momento presidente da CBJ) e o Ney Wilson, gestor de alto rendimento, absorveram de forma integral o projeto a curto, médio e longo prazo para o judô feminino sênior (fui treinadora da base de 2001 até 2005). Em 2005, assumi a equipe sênior permanecendo até 2017.

Óbvio que houve muitos embates, brigas por melhorias e investimento direcionado para o feminino, mas tinha um preço e o preço era entregar resultados. Graças a Deus, honramos todo o sacrifício das atletas que pavimentaram essa estrada, desde o 1º Mundial feminino, culminando na nossa tão sonhada medalha olímpica, conquistada pela Kekynha (Ketleyn Quadros) em 2008, a 1ª medalhista do judô e do BRASIL em esportes individuais. Kekynha abriu a porteira que, se Deus quiser, permanecerá aberta. Saímos de uma proibição por lei de prática esportiva de lutas em 1972 e reescrevemos nossa história com várias medalhas em mundiais e 2 ouros e 3 bronzes olímpicos. Uhuuuuu! Vamos que vamos!

3) Para você, qual é o papel da mulher no esporte?
Silvana: É igual ao papel do homem: difundir uma cultura de saúde, respeito e amizade.

Rosicleia: Penso que não só no esporte, mas dentro da sociedade como um todo, a mulher tem papel fundamental. A mulher por décadas esteve à sombra dos homens, mas graças a muita luta e conscientização da sociedade, estamos ocupando nosso espaço. Particularmente, penso que não deveria ser a questão do gênero o fator de impedimento para ocupar cargos e, sim, a capacitação da pessoa. O que impede uma mulher ser treinadora da seleção masculina de futebol? A resposta é OPORTUNIDADE. Muitos responderão que faltaria experiência, o que é totalmente diferente de capacidade ou competência. Porém, se não for dada a chance de mulheres ocuparem espaços dentro das cadeias de gestão, essas “oportunidades” não acontecerão.

4) Quais barreiras ou dificuldades teve que enfrentar para chegar onde está?
Silvana: Se até hoje o judô é um esporte predominantemente masculino, quando eu comecei era ainda mais. Eu quase não tinha meninas com quem treinar, competir. Então, tive que enfrentar muitos tabus e romper diversas barreiras até ser campeã brasileira e investir em minha formação profissional.

Pode parecer “mimimi”, como se diz hoje, mas considero que nós mulheres temos que provar a todo momento nossa capacidade e, ai de nós, se cometermos um erro. Aí, aquela porta que estava só entreaberta, se fecha de vez (risos).

Rosicleia: Muiiiiiitas!!!! Pensei em desistir muitas vezes. O preconceito sempre foi ENORME, mas a estrutura/apoio familiar e de pessoas diretamente envolvidas e o meu senso de PROPÓSITO não me permitiram desistir. A sociedade é machista, o esporte é machista. As oportunidades dadas são diferentes. Nós mulheres, precisamos PROVAR que somos capazes e nosso nível de exigência com nós mesmas chega ser “desumano” e demoramos a “aceitar” que de fato somos capazes, porque ainda precisamos da aceitação masculina.

5) Qual recado você daria para outras mulheres que estão ou querem entrar no esporte?
Silvana: Que nunca desistam dos seus sonhos, agarrem seus objetivos e aprendam com o Judô a criar estratégias para vencerem o próximo desafio, pois é preciso insistir, persistir e ser muito resiliente para chegarmos onde queremos. Nunca esqueçam que é o conhecimento a melhor arma contra todas as barreiras que nos impõem.

Rosicleia: Capacitem-se sim, estudem, estudem muito, tenham conteúdo, não se agarrem no discurso de que temos menos chances. Sim, isso é fato, sabemos, mas não sejam “rasas” em suas argumentações, fundamentem seus posicionamentos, sejam resilientes.

Não serei hipócrita em dizer que será fácil. Não, não será! Mas garanto a todas que o sabor da caminhada e da conquista são indescritíveis. Briguem por espaços de decisões, porque não adiantará ter um “posto” se você não tiver peso nas decisões.

Nós somos plurais e podemos desempenhar muitos papéis: mãe, filha, irmã, mulher, amiga, empreendedora, etc. Não se limitem. Vamos que vamos, mulherada!

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