FIM DE UMA ERA: Rosicleia Campos, treinadora mais vitoriosa do judô feminino brasileiro, dá adeus à seleção

Foram 22 medalhas em Mundiais Sênior, Individuais ou Por Equipes, e cinco medalhas olímpicas, que tiverem em comum a energia da treinadora à beira do tatame


Durante mais de 15 anos foi impossível falar de seleção feminina de judô e não pensar no nome dela: Rosicleia Campos. E, é claro, isso tem uma justificativa mais do que plausível. A “Tia Rosi” foi convidada a ingressar na Confederação Brasileira de Judô para tentar elevar o nível competitivo das meninas em 2005. Não só cumpriu o objetivo como causou uma revolução. E em diferentes aspectos do esporte.

A revolução na logística. Depois da chegada da Rosi, a seleção feminina passou a ter um planejamento próprio, de viagens, de treinamentos, um novo olhar da Comissão Técnica. E os resultados logo apareceram. Primeiramente, a nível Continental, com as sete medalhas nos Jogos Pan-americanos Rio 2007.

Mas a caminhada estava só começando. Em 2008, a primeira medalha olímpica do judô feminino, o bronze com Ketleyn Quadros. A presença constante em pódios de Mundiais a partir de 2010, depois das pioneiras Dani Zangrando e Edinanci Silva, com Mayra Aguiar, Sarah Menezes e Rafaela Silva. Em 2011, o reconhecimento do Comitê Olímpico do Brasil por todo o trabalho que havia sido feito, com a eleição como melhor técnica do ano, seria o prenúncio do que estaria por vir em Londres. A revolução na forma como se enxergam as treinadoras tanto no judô, quanto no esporte olímpico.

Em 2012, o primeiro ouro do judô feminino com Sarah. No ano seguinte, o primeiro ouro em Mundial com Rafaela Silva. Em 2014, outro título mundial com Mayra Aguiar. Conquistas, conquistas e conquistas. Foram 22 medalhas em Mundiais Sênior, Individuais ou Por Equipes, e cinco medalhas olímpicas. Tudo com uma coisa em comum, a gritaria, a energia, a vibração da treinadora que todo o mundo judô conhece à beira do shiai-jô. A revolução nos resultados, mas também na conduta, mostrando que é possível ser humano, passional e, ainda assim, de alto nível técnico e estratégico.

Para Rosicleia Campos, que sempre representou o Brasil, o Judô do Rio de Janeiro e o Flamengo, fica o nosso muito obrigado! Esse é o fim de um ciclo, de uma era, mas também um recomeço. Aliás, um recomeço que já tem um fruto, uma pedra preciosa, como Eliza Ramos, por exemplo. Sabemos que você ainda tem muito a contribuir com o judô do Rio, do Brasil e com o esporte olímpico de uma maneira em geral.

Siga em frente com a tua energia de sempre!

Confira a entrevista exclusiva com a treinadora do Flamengo:

1) Como você se despede da seleção brasileira feminina de judô?
Foram 37 anos vestindo o Judogui carregando o nome do Rio de Janeiro e do Brasil. Tenho muito orgulho do caminho que as mulheres construíram dentro do esporte e o espaço que conquistamos de forma definitiva.

2) Qual a sua principal lembrança, o momento mais marcante?
São tantas, passa um filme. Desde 2000 componho o quadro de treinadores da CBJ, são 21 anos, conquistamos a maior idade. Foram conquistas inéditas no decorrer desses anos. Momentos como os Jogos Pan-Americanos no Rio em 2007, onde entramos para história conquistando 7 medalhas.
A medalha olímpica tão sonhado da Ketleyn Quadros nos Jogos Olímpicos de Pequim 2008. O primeiro ouro olímpico da Sarah Menezes em Londres 2012. O primeiro ouro mundial da Rafaela em 2013. Uma colcha de retalhos de emoções, lutas, derrotas e vitórias que nos transformaram no que somos hoje.

3) Mudaria alguma coisa na sua trajetória à frente da equipe? Se sim, o que?
Tenho absoluta certeza do meu trabalho e contribuição para a transformação do judô feminino. Foram dias de muitas lutas, dentro e fora dos tatames. Resistência de uns, críticas de outros… A história foi escrita, o legado está aí, não mudaria nada.

4) Qual o legado que você deixa?
Um judô feminino com identidade, autoestima alta, autonomia, respeitado mundialmente.

5) Que dica você daria para a nova Comissão Técnica, especialmente para a Sarah?
Tenho muito orgulho da nova CT. Além de serem pessoas maravilhosas, são extremamente competentes. As duas estão percorrendo o mesmo caminho que trilhei em diferentes fases.

Assim como a Sarinha, encarei meu primeiro desafio aceitando compor a equipe técnica dos Jogos Olímpicos de Sydney 2000, onde recém tinha anunciado minha aposentadoria. Sarinha nasceu pronta e desempenhará brilhantemente o cargo de treinadora, pois passou por experiências que serão ferramentas para ter excelência no novo desafio.

Andrea Berti, assim como eu, vem de anos de experiência à frente da equipe de base, onde encontrará muitas atletas com quem trabalhou e hoje compõem a equipe sênior. Traz também na bagagem a vivência olímpica tanto como titular, quanto como na equipe de apoio. Tenho absoluta certeza que nos darão muitas alegrias.

Por fim, baixo reproduzimos a carta de despedida de Rosicleia Campos na íntegra:

Tudo começou com uma inocente fuga das aulas de catecismo para assistir aos treinos de judô na Academia Ren Sei Kan.

Parece que foi ontem, mas hoje concluo mais um ciclo da minha vida. Durante 37 anos estive a serviço da Seleção Brasileira de Judô.
 
Ainda aos 15 anos fiz minha primeira viagem internacional para defender nosso país e, orgulhosamente, vesti o JUDOGUI com o emblema do BRASIL no peito. Que orgulho!!

Não imaginava que naquela ocasião estaria iniciando uma relação que se tornaria a grande paixão da minha vida.
 
Atleta dos 15 aos 31 anos, representei o Brasil e o Flamengo em duas Olimpíadas – Barcelona 1992 e Atlanta 1996.

Migrar de atleta para a comissão técnica, até a chegada à Seleção Brasileira, foi um caminho de tensão e muita provação. Sem a coletividade e o apoio de algumas pessoas, família, clube, CBJ, não seria possível permanecer.

Em 2000, veio a minha aposentadoria como atleta e o convite para compor o quadro de treinadores nos Jogos Olímpicos de Sydney.

Em 2001, assumimos a equipe sub-18. Em 2002, a equipe sub-21. Em 2005, uma das fases mais desafiadoras da minha vida: ser treinadora da equipe SÊNIOR FEMININA.

O desafio não foi apenas por um judô feminino emergente, mas também pelo fato de ser uma mulher. Uma mulher em um esporte que demorou a reconhecer o potencial profissional feminino e suas competências na conquista definitiva de espaço e respeito, com autonomia de ações independentes.

O caminho não foi fácil. A resistência em ter uma mulher à frente da seleção veio de vários lados: gestores, treinadores, atletas… Como ninguém chega a lugar nenhum sozinha, lutamos juntos por esse espaço – eu, Ney Wilson e Roberto Perillier – e ao longo do caminho os resultados mostraram que as escolhas foram acertadas. Conquistamos as Américas e o Mundo.

Ter reconhecimento público e honra em receber o Prêmio Brasil Olímpico de melhor treinadora de esportes individuais em 2011 coroou um trabalho que estava só começando. Naquele momento algumas metas inéditas foram alcançadas: sete medalhas nos Jogos Pan-Americanos Rio (Daniela Polzin, Érika Miranda, Daniele Zangrando, Danielli Yuri, Mayra Aguiar, Edinanci Silva, Priscila Marquês e Fisio Roberta Mattar), realização do sonho olímpico através da linda Ketelyn Quadros (Pequim 2008), a primeira conquista em Mundiais com a Mayra Aguiar em 2011.

Depois de tantos feitos inéditos, veio o ouro olímpico da Sarinha (Londres 2012), o ouro Mundial da Rafaela Silva (Rio 2013) e muitas outras medalhas olímpicas e mundiais e também as que chegaram perto, Maria Portela (Portelinha).

Em 2013 conquistei minha medalha de ouro pessoal, pois resolvi ser mãe e Deus me abençoou com os gêmeos (Ana Clara e Matheus).
 
Ser mãe no meio de um ciclo olímpico fez parte de uma das principais conquistas, onde provamos, na prática, que mulheres têm todas as credenciais necessárias para ocuparem esses cargos. Agora, todas as mulheres que estão chegando e ainda vão chegar, já terão a certeza que é possivel ser mãe e ter sucesso como treinadora.

O encerramento desta etapa da vida já vem sendo pensado junto com as pessoas que sempre me apoiaram. Hoje estou em paz por ter feito o que gostaria. Cada degrau superado, cada trilha percorrida da minha carreira faz parte da história do judô feminino.

Presenciar a transição desta gestão para pessoas experientes e capazes de dar continuidade a tudo que construímos me traz mais certeza de que eu faria tudo de novo.

Tenho orgulho de ser uma das mulheres mais graduadas do país (7º dan) e com uma participação ativa na conquista de tantas medalhas mundiais e olimpicas.

Os ciclos iniciam e terminam. E nesse ciclo ajudei a escrever a história do JUDÔ FEMININO, com honestidade, lealdade, determinação. Fiz disso o meu propósito de vida.
 
Aceitei críticas. Todas elas respondidas com trabalho.
 
Levo comigo saudades, alegria e, principalmente, o sentimento do dever cumprido. Saio feliz por ter contribuído pela a independência do JUDÔ FEMININO.
 
Quero agradecer primeiramente a Deus, a todos que me deram oportunidade, às atletas (sem elas os objetivos não seriam alcançados), aos meus pais (Dona Delza e Sr. Campos) pela oportunidade de poder praticar aquilo que gosto, ao meu esposo  (Edmundo) por ter aceitado o desafio de ser pai e mãe nas minhas inúmeras ausências, à minha família como um todo, ao professor Betão, que me conduziu durante todos esses anos no nosso clube Flamengo, desde a minha chegada aos 15 anos até a minha contratação como treinadora em 2001.
 
A vida é imprevisível. Nada acontece por acaso, tudo tem seu motivo, sua hora, seu lugar para acontecer. A vontade é DIVINA! O futuro planejamos, mas o resultado nunca antevemos.
 
Desejo sucesso à minha amiga Andrea Berti, que desbravou e pavimentou essa estrada junto comigo, e à nossa pequena notável Sarah Menezes. Iniciamos nossa caminha juntas, quando ela tinha apenas 15 anos de idade.

É sobre amor, entrega e propósito!

Vamos que vamosssss, mulherada!!!

Rosicleia Campos

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